Cliente da 123 Milhas pode pedir suspensão de parcelas a vencer

Um dos requerimentos formulados na audiência da Comissão de Defesa do Consumidor vai cobrar explicações da Febraban sobre descumprimento do CDC

Diante do aparente beco sem saída que se configurou com a recuperação judicial da agência de viagens 123 Milhas, o que colocou os cerca de 700 mil clientes lesados no final da fila de ressarcimentos, dois fios de esperança foram apontados na audiência pública da Comissão de Defesa do Consumidor e do Contribuinte que debateu o tema nesta quarta-feira (13/9/23), na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).

A audiência aconteceu atendendo a requerimento do presidente da comissão, deputado Adriano Alvarenga (PP), e reuniu, entre outros, especialistas em direito do consumidor e clientes lesados pela empresa.

O primeiro desses fios de esperança é a possibilidade de os consumidores apelarem para o artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) para que possam interromper o pagamento dos parcelamentos dos pacotes comprados via cartão de crédito e, assim, ao menos diminuir o prejuízo. Para isso, bastaria notificar a instituição financeira antes do vencimento da próxima fatura.

A informação foi reforçada pela assessora jurídica do Procon Assembleia, Marina Bicalho Lima. O órgão tem registrado grande procura de clientes da 123 Milhas desde a suspensão dos pacotes e da emissão de passagens da linha promocional, o que foi anunciado unilateralmente pela empresa no último dia 18 de agosto.

Curiosamente, conforme lembrou Marina Lima, o CDC acaba de completar na última segunda-feira (11) 33 anos em vigor. “Infelizmente, em vez de comemorarmos isso e tentar avançar na luta por mais direitos, estamos discutindo essa situação absurda. Brincar com o dinheiro e o sonho dos outros parece ter sido fácil para eles e, agora, com a recuperação judicial, eles vão pagar os prejuízos quando der e da forma que der”, lamentou.

A outra esperança dos consumidores lesados pode vir do deferimento parcial, na tarde desta quarta-feira (13), da tutela de urgência pedida pelo Ministério Público para a desconsideração da personalidade jurídica dos dois sócios da 123 Milhas: os irmãos Ramiro Júlio Soares Madureira e Augusto Júlio Soares Madureira.

Esse anúncio foi feito, na audiência realizada na ALMG, pela advogada Luciana Atheniense, da Comissão de Defesa do Consumidor da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais (OAB-MG).

Segundo ela, pela decisão, diante da possibilidade de fraude, os dois sócios podem ter que arcar por eventuais prejuízos aos consumidores com o patrimônio pessoal até o limite de R$ 50 milhões cada um. “É pouco, mas já é uma vitória, pois isso tira o véu de proteção e vai direto ao patrimônio deles. Agora resta ver se vão achar esse dinheiro na conta deles”, alertou.

Sobre a possibilidade de suspender o pagamento das parcelas a vencer, Marina Lima informou que, caso a instituição financeira se negue a reconhecer esse direito previsto expressamente no CDC, o que é bastante comum, sempre é possível ajuizar ação para isso. Vitórias de consumidores por todo o País usando essa estratégia já têm sido noticiadas na imprensa.

Isso também pode ser feito, segundo ela, por meio de adesão a ações coletivas de entidades como o Instituto de Defesa Coletiva, que já estaria acionando cinco grandes bancos com esse fim: Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Santander e Nubank.

Contestação deve ser feita dez dias antes de fatura vencer

Entre os requerimentos formulados ao final da audiência, um deles vai justamente cobrar explicações da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) sobre esse descumprimento, atendendo a sugestão do advogado Thiago Augusto de Freitas, que preside a mesma comissão da OAB-MG.

Ele e um familiar também estão entre os clientes lesados pela 123 Milhas. O advogado inclusive já conseguiu uma liminar contra o Banco Itaú para suspender as cobranças no cartão de crédito, lembrando a chamada responsabilidade solidária de todos os agentes na relação de consumo.

“Antes liguei para o banco, e é claro que eles vieram com aquela resposta pronta do departamento jurídico para que eu resolvesse a questão direto com a 123 Milhas. Mas o artigo do CDC é expresso e não deixa dúvidas. Com a contestação pelo consumidor, é obrigação deles suspender a cobrança. A culpa não é da vítima”.
Thiago Augusto de Freitas
Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-MG

A alínea G do artigo 54 do CDC diz que é vedado ao fornecedor de produto ou serviço que envolva crédito, entre outras condutas, realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de, pelo menos, dez dias contados da data de vencimento da fatura.

O mesmo trecho do CDC diz ainda que é vedada a manutenção do valor contestado na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de deduzir do total da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não encerrada a apuração da contestação.

Primeiro alerta veio em agosto do ano passado

Outra prática bastante criticada na audiência foram os gastos maciços em publicidade feitos nos últimos anos pela 123 Milhas, o que, na avaliação do deputado Adriano Alvarenga, conferiram uma aura de credibilidade à empresa enquanto o calote estava sendo gestado.

O parlamentar lembrou ainda que, ainda em agosto de 2022, o Procon de São Paulo notificou a empresa, após reportagem publicada pela imprensa, pedindo esclarecimentos pela não entrega de bilhetes aéreos e vouchers de hospedagem. Na época, a empresa garantiu a execução do serviço ou a devolução dos valores pagos.

“Em agosto do ano passado eles já praticavam preços muito aquém do mercado. Ou seja, esse golpe arquitetado por eles contra os consumidores já estava programado. Eles investiram bilhões em marketing sem se preocupar que os sonhos de 700 mil clientes seriam brutalmente interrompidos. Também prejudicaram mais de mil trabalhadores, que ficaram de uma hora para outra sem emprego. Mas o bolso deles com certeza está cheio de dinheiro”.

O parlamentar também lembrou que os dois sócios da 123 Milhas não compareceram nesta quarta-feira (13) em audiência conjunta realizada na Câmara dos Deputados pelas Comissões de Defesa do Consumidor e de Fiscalização Financeira e Controle. “Quem se esconde tem culpa no cartório”, sentenciou.

Na semana passada, os irmãos Ramiro e Augusto já haviam prestado depoimento à CPI das Pirâmides Financeiras, também da Câmara, após terem a saída do País proibida para esse fim pela Justiça Federal.

A deputada Maria Clara Marra (PSDB) também criticou o fato de que a empresa continue vendendo seus serviços pela internet mesmo após a eclosão do escândalo.

“Eles têm um passivo de mais de R$ 2 bilhões e continuam fechando vendas, diante da morosidade da resposta do Poder Judiciário. Quem compra agora também vai ser lesado”, pontuou. No site da 123 Milhas, o link para o Portal do Consumidor do governo federal é o único indício da confusão envolvendo a empresa.

“Precisamos de uma legislação federal mais rigorosa, com penas mais duras, principalmente em casos assim, de estelionato continuado. A 123 Milhas deu uma aula de como lesar e usar a justiça para escapar”, pontuou o deputado Douglas Melo (PSD), que é vice-presidente da Comissão de Defesa do Consumidor, ao criticar a recuperação judicial concedida à empresa.

Os deputados Eduardo Azevedo (PSC) e Elismar Prado (Pros) também cobraram ações mais efetivas das autoridades para garantir que o caso não fique impune. “Além dos problemas financeiras, temos que levar em conta os problemas psicológicos para essas pessoas lesadas”, ponderou Prado.

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