Circulam em redes sociais áudios e vídeos que acusam a China de exportar equipamentos de proteção individual (EPIs) previamente contaminados pelo novo coronavírus. As mensagens, sem qualquer evidência, recomendam que a população se recuse a usar, por exemplo, máscaras de origem chinesa distribuidas pelo poder público.
Tanto o Ministério quanto as secretarias de Saúde rejeitam a informação. O infectologista Carlos Starling, que integra o comitê de enfrentamento à pandemia em Belo Horizonte, classificou a disseminação de conteúdos afins como “absurdo” e como “um crime contra a saúde pública”.
Contrariando pesquisas científicas, entre elas uma publicada no dia 17, pela revista Nature, e assinada por cientistas de universidades dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Austrália, as publicações garantem que o vírus teria sido criado em laboratório e seria parte de um suposto plano de dominação chinês.
“Não há nenhuma evidência que produtos enviados da China para o Brasil tragam o novo coronavírus. Os vírus geralmente não sobrevivem muito tempo fora do corpo de outros seres vivos, e o tempo de tráfego destes produtos costuma ser de muitos dias”, aponta o Ministério da Saúde em sua página na internet.
Estevão Urbano, presidente de Sociedade Mineira de Infectologia, ratifica que o vírus não sobreviveria ao tempo de transporte entre os dois países.
A Prefeitura de Belo Horizonte forneceu detalhes dos protocolos de importação. “A segurança e a qualidade dos itens adquiridos nas compras públicas são garantidas por meio de uma avaliação técnica feita pela Secretaria Municipal de Saúde. Essa testagem é realizada em amostras dos insumos comprados. Só a partir dessa validação, o fornecedor está apto a fazer a entrega dos itens adquiridos”, informou por meio de nota, completando que a Secretaria Municipal de Saúde deu início ao processo de aquisição dos 2 milhões de máscaras que vão ser doadas para as populações de vilas e favelas na capital.
Instrutor da Sociedade Mineira de Terapia Intensiva (Somiti), membro da Sociedade Mineira e Brasileira de Infectologia e integrante do Comitê de Enfrentamento à Epidemia da Covid-19 de BH, Carlos Starling classificou o áudio, a que teve acesso, como “um crime contra a saúde pública”.
“A origem dessa coisas é exatamente o medo, o preconceito. Os equipamentos importados da China são muito bem-vindos neste momento. Não tem nada de contaminação. Isso é ma fantasia e fruto de mentes paranoides. Isso não vale ser levado em consideração em hipótese alguma. É um desserviço à população”, comentou o infectologista.
O que diz a lei
Embora lembre que a propagação de notícias falsas não constitui um crime em específico, Luciano Lopes, advogado e professor de direito penal na Faculdade Milton Campos, avalia que a distribuição de material com teor falso poderia ser classificado em crimes diversos (contra a honra, por exemplo).
Neste caso, ficaraia classificada no âmbito do artigo 41, da Lei das Contravenções Penais. A pena para quem “provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto” é de prisão simples, de 15 dias a seis meses, ou multa.
Quanto às falas que atribuem ao povo chinês características depreciativas, Lopes lembra que a Lei de Racismo, em seu artigo 20, descreve o delito de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, que tem pena de reclusão de um a três anos e multa”.
Reportagem falou com autor e disseminador do boato
A reportagem chegou ao autor do primeiro áudio que dissemina a informação falsa e que foi vastametne distribuído no WhatsApp. Cantor e compositor gospel, Rodrigues Filho vive em Cuiabá, capital matogrossense, na região central do país. O Estado tem, segundo boletim epidemiológico mais recente, 181 casos diagnosticados da doença e seis óbitos confirmados.
O autor da mensagem se diz estudante do terceiro ano do curso de medicina. No entanto, ele se recusa a informar a universidade em que estuda e também a qual igreja estaria ligado.
“Estão exportando milhões e milhões de máscaras e, em muitas daquelas máscaras, o vírus está vindo nelas. Avisa as pessoas, envia esse áudio para quem você puder. É um alerta. (…) A pessoa dentro de casa vai receber a máscara e ficar contaminado por ela. Eu não uso máscara que vem da China e você não pode deixar sua família usar”, dizia em uma primeira publicação, divulgada no dia 8 de abril.
Em conversa por telefone, ele confirmou ser o autor da mensagem. “Eu fui o primeiro a gravar um áudio dizendo sobre isso aí. E depois que eu gravei tem mais uns quatro, cinco que soltou (sic) a mesma coisa”, disse, nitidamente orgulhoso. Perguntado sobre evidências que levaram a tal conclusão, limitou-se a afirmar: “Pra quê mais comprovação? O vírus existe? Existe. Porque? Por que ele foi feito”.
Sobre as recomendações de uso de máscaras por autoridades sanitárias, bem como sobre os decretos municipais que obrigam o uso do equipamento em diversas cidades brasileiras, caso de Belo Horizonte, o cantor defende que “cada um faça a sua”.
“O que os chineses querem fazer? Eles querem dominar o mundo. Por isso a matança começou lá. Esse Covid-19 é uma química produzida em laboratório, é um veneno produzido lá que eles colocam em máscaras, em alguns lotes, não em todos. Isso não tem nem o que fazer”, declarou, ignorando que a pandemia provocou também na China uma severa desaceleração econômica, que desencadeou pessimistas projeções relativas ao Produto Interno Bruto (PIB) do país neste ano.
Quanto às pesquisas recentes, capitaneadas por estudiosos de diversos países, que apontam que o vírus não teria sido desenvolvido em laboratório, ele volta ao ataque: “Que naturalmente nada! Mentira! Conversa fiada!”.
Filho é perguntado se não soaria improvável que, diante da menor suspeita de que os EPIs chineses tivessem contaminados, não apenas o setor público como também grandes empresas, como a Fiat, adquirissem máscaras pruduzidas no país. “Você sabe que tem muito jogo político. A China comprou a Globo, comprou a Bandeirantes, está comprando meio mundo…”, diz, mais uma vez, sem nenhuma fundamentação.
“Se vocês querem continuar usando os produtos da China, continua (sic). Pode ver, a maioria dos países que receberam produtos da China são os países que estão sendo mais infectados”, comenta ele, ignorando que, na verdade, a entrega de equipamentos ocorreu quando os casos se ampliavam, dado que em fevereiro e março, o país não exportou tais itens, focando no atendimento do mercado interno.
Para além da teoria de uma conspiração de dominação chinesa, Filho acredita que a doença é usada por lideranças políticas. “Tem uma politicagem, uma safadeza desses prefeitos e governadores, uma máfia que está querendo derrubar o (presidente da República Jair) Bolsonaro, isso a gente já sabe já”, decreta.
Ao ser lembrado dos esforços de importações de EPIs chineses feitos pelo próprio governo federal, ele reage energicamente: “Isso é mentira!”. A reportagem informa que poderia reproduzir áudio de uma das coletivas de imprensa do Ministério da Saúde em que falou-se sobre o assunto. O cantor volta à carga: “(O ex-ministro Luiz Henrique) Mandetta é bandido, tem que ir para a cadeia. Ele já foi expulso do governo. Conversa fiada! Ele foi exonerado, porque é bandido”.
Uma hora depois de entrevista, autor voltou a enviar áudio com informações falsas
Uma hora após a conversa, Filho enviou um outra mensagem. “Estou gravando esse áudio para o pessoal do jornal, são jornalistas que me procuraram para falar sobre um áudio que está circulando aí… Isso daí não é fake news não, viu pessoal?”, disse.
Em tom xenofóbico, ele, então, classifica chineses como “bandidos”, “perversos” e “cabras safados” e defende que sejam presos e expulsos do país. O áudio também sugere que os meios de comunicação estão sendo comprados pela China.
“Se alguém passar entregando máscara dizendo que é da Secretaria de Saúde, não pega! Não pega!”, sustenta. Em sua foto de perfil, no WhatsApp, ele usa máscara e touca cirúrgicas. Perguntado sobre a fabricante do equipamento, primeiro, Filho titubeia, depois diz ter ele mesmo produzido o material.